A menina por detrás da janela
Era uma vez, num país cinzento e frio, um Rei que adorava uma menina.
A menina era tão bonita que o Rei se apaixonara por ela. Como a queria sempre junto de si, lançou-lhe um feitiço e transformou-a em boneca. Oferecia-lhe colares e travessões em veludo para os cabelos e, todas as noites, passava longas horas com ela. Deitava-a a seu lado e acariciava-a com tanta paixão que a boneca quase asfixiava.
Quando o dia despontava, o Rei partia e a boneca ficava sozinha. A porta do quarto não estava fechada. A boneca podia sair e fugir mas, como achava que o Rei ficaria desgostoso, não ousava fazê-lo. As suas pernas de algodão não a deixavam andar e, como não tinha boca, tinha medo de perder-se e de não conseguir perguntar o caminho.
Então, quando o Rei se ia embora, ela ficava sentada à janela, com a cara apoiada contra o vidro frio, a olhar para a rua com tristeza. Foi assim que os seus lábios acabaram por desaparecer. Primeiro tornaram-se transparentes, como o vidro em que se apoiavam, e depois evaporaram-se, apagando-se completamente.
Os seus dias decorriam intermináveis e tristes.
Uma vez descobriu um rapazinho que brincava num jardim. Quem lhe dera ir ter com ele! Mas como podia ela chamá-lo se não tinha boca?
Com o coração pesado, passou os dias seguintes a espiar o novo vizinho, escondida por detrás da cortina. À noite, o Rei, alarmado com a tristeza da boneca, abraçava-a ainda com mais ternura, esforçando-se por expulsar o desgosto que lhe petrificava as longas pestanas e ensombrava os olhos. Às vezes, abraçava-a com tanta força que ela sentia-se profundamente assustada.
Certo dia, o rapaz, sentindo-se observado, escalou a varanda e chamou pela boneca. No início, a estranha menina por detrás das cortinas recusou mostrar-se. Mas ele fez de conta que se ia embora e ela, julgando que o visitante se tinha afastado, abriu a janela com os olhos cheios de inquietação. Embora muda, tentou mimar a sua história. O rapaz não compreendeu tudo, mas adivinhou o sofrimento e compreendeu o seu pedido mais insistente: a boneca queria uma boca. Como iria ele encontrar tal coisa?
Felizmente que a mãe do rapaz era uma fada. Juntos, percorreram os jardins ainda adormecidos pelo inverno, e descobriram, no cantinho de um muro, duas violetas ainda mal entreabertas. O menino colheu-as com delicadeza e a mãe colocou os dois botões na pele branca da boneca, um por cima do outro.
A boneca abriu logo os lábios azulados e gaguejou, numa vozinha trémula:
— Por favor, as minhas pernas são de algodão e são tão frágeis que gostaria de ter umas bem mais fortes para correr!
Com um ramo de bétula, mãe e filho fizeram-lhe um par de pernas novas. Fininhas mas sólidas.
A boneca brincou o dia todo com o amigo. Quando anoiteceu, este regressou a casa. A boneca não conseguia decidir se voltava ou não para casa do Rei. A verdade é que não queria mais lá voltar…
Nesse dia, como de costume, o Rei regressou a casa ao fim da tarde e procurou a boneca por todo o lado. Enquanto a procurava, a sua sombra enorme ia deixando, nas cortinas, reflexos de garras assustadores… Escondida atrás de uma sebe, a boneca tremia. O desespero roía-lhe o coração, mas o medo impedia-a de empurrar a porta e de ter de aguentar as mãos do Rei no seu corpo, os seus beijos e as suas censuras.
Cheia de frio e sem saber para onde ir, aninhou-se contra a casca mirrada e grosseira de um velho carvalho. Tentou dormir, semicoberta por um tapete de folhas mortas. Decerto iria morrer ali! O vento lançava os seus dedos gélidos sobre ela e entrava-lhe na pele como se fossem agulhas de neve, que a matariam antes do dia raiar.
De repente, uma mão acariciou-lhe o rosto. Alguém a levantou e a boneca sentiu-se voar numa nuvem. Começou a cair docemente e aterrou num oceano de plumas, numa cama, debaixo de um edredão maravilhosamente quente, que cheirava a lírios e a lavanda.
Acordou de manhã, com a mão quente e suave da fada a afagar-lhe os cabelos, e deixou-se ficar em casa dela.
Mal o céu se tingiu de negro e as estrelas começaram a cintilar, a fada aguardou o regresso do Rei. Quando este chegou a casa, sentou-se num banco do fundo do jardim, onde permaneceu horas a fio, petrificado e soterrado por um manto de gelo. A fada tentou ir ao seu encontro. O Rei, porém, fugiu, escondendo a cara. Foi então que ela viu que também ele não tinha boca.
No dia seguinte, quando o Rei se sentou de novo no banco, a boneca dirigiu-se lentamente para ele. Ouvia o seu coração a bater com força e a voz da fada que a encorajava. Com o corpinho a tremer, estendeu ao homem dois botões de flores: um de hipericão e outro de ipomeia. Depois, cheia de medo, correu a refugiar-se atrás de um maciço de peónias. O Rei, surpreendido, deixou que a fada colocasse as pétalas no lugar da sua boca ausente. Fez-se um grande silêncio e, depois, ouviu-se um suspiro de vento como os que anunciam a chuva.
O Rei começara a sussurrar e a contar a sua história. Falou durante toda a noite. A fada escutou-o, as árvores escutaram-no, os rouxinóis mantiveram-se em silêncio. E nem as corujas caçaram nessa noite. Ao nascer do dia, o Rei calou-se. Uma lágrima deslizou-lhe pela face; a fada recolheu-a com a ponta do dedo e deixou-a cair sobre a boneca adormecida. Esta transformou-se imediatamente numa menina. Começou a tocar nos braços rosados e nas pernas, sem acreditar que os tinha de verdade. Depois levantou-se e pôs-se a dançar!
Sem fazer barulho, o sol limpou as nuvens e enrolou-as num cantinho do horizonte. Esticou um raio todo emaranhado e fez cócegas nos narizes dos que ainda dormiam.
O Rei foi castigado. Perdeu o reino e a coroa. Teve de partir para as paragens desoladas do Grande Norte a fim de conseguir obter um Perdão. Antes de partir, o Rei, que se tinha transformado num homem como os outros, beijou uma senhora na soleira da porta de casa. A menina achou que a senhora era a fada, mas o amiguinho chamou-a para brincar e ela correu para ele.
Joly Guth
La petite fille derrière la fenêtre
Draguignan, Lo Païs d’Enfance, 2002
(Tradução e adaptação)
Deixe um comentário